A
quaresma começa todos os anos com a narração de Jesus que se retira
para o deserto por quarenta dias. Nesta meditação introdutória queremos
tentar descobrir o que foi que Jesus fez neste tempo, quais são os temas
presentes na narração evangélica, para aplica-los à nossa vida.
1. “O Espírito conduziu Jesus ao deserto”
O primeiro tema é o do deserto. Jesus acabou de receber, no Jordão, a
investidura messiânica para evangelizar os pobres, curar os quebrantados
de coração e pregar o reino (cf. Lc 4, 18s). Mas não se apressa para
realizar nenhuma dessas coisas. Pelo contrário, obedecendo a um impulso
do Espírito Santo, se retira no deserto onde permanece quarenta dias. O
deserto em questão é o deserto da Judéia, que se estende a partir de
fora das muralhas de Jerusalém até Jericó, no Vale do Jordão. A tradição
identifica o lugar com o assim chamado Monte da Quarentena situado em
frente ao Vale do Jordão.
Ao longo da história tem havido multidões de homens e mulheres que
escolheram imitar este Jesus que se retira ao deserto. No Oriente, a
começar por Santo Antônio Abade, retiravam-se nos desertos do Egito ou
da Palestina; no ocidente, onde não existiam desertos de areia, se
retiravam em lugares solitários, montanhas e vales remotos. Mas o
convite a seguir Jesus no deserto não é dirigido somente aos monges e
aos eremitas. De forma diferente, é dirigido a todos. Os monges e os
eremitas escolheram um espaço de deserto, nós temos que escolher pelo
menos um tempo de deserto.
A Quaresma é uma oportunidade que a Igreja oferece a todos, sem
distinção, para viver um tempo de deserto sem ter que, por isso,
abandonar as atividades diárias. Santo Agostinho lançou este triste
apelo:
“Retorneis para dentro do vosso coração! Onde quereis ir longe de vós?
Retorneis da vagabundagem que vos levou para fora do caminho; retorneis
ao Senhor. Ele está pronto. Primeiro retorne ao teu coração, tu que te
tornaste estranho a ti mesmo, por força de vagabundar fora: não conheces
a ti mesmo, e procuras aquele que te criou! Volta, retorna ao coração,
separa-te do corpo… regresse ao coração: lá examina o que talvez
percebas de Deus, porque ali se encontra a imagem de Deus; na
interioridade do homem habita Cristo[1]”.
Reentreis no próprio coração! Mas o que é e o que representa o coração,
que tanto se fala na Bíblia e na linguagem humana? Fora do contexto da
fisiologia humana, onde não é mais do que um órgão do corpo, embora
vital, o coração é o lugar metafísico mais profundo de uma pessoa; é o
íntimo de todo homem, onde cada um vive o seu ser pessoa, ou seja, o seu
subsistir em si, em relação a Deus, do qual tem origem e no qual
encontra o seu fim, aos outros homens e à criação inteira. Até mesmo na
linguagem comum, o coração designa a parte essencial de uma realidade.
“Ir ao coração de um problema” quer dizer ir à parte essencial dele, da
qual depende a explicação de todas as outras partes do problema.
Assim, o coração de uma pessoa mostra o lugar espiritual onde é
possível contemplar a pessoa na sua realidade mais profunda e
verdadeira, sem véus e sem fixar-se nos seus aspectos marginais. É no
coração que acontece o juízo de cada pessoa, sobre o que traz dentro de
si e que é a fonte da sua bondade e da sua maldade. Conhecer o coração
de uma pessoa quer dizer ter penetrado no santuário íntimo da sua
personalidade, pelo qual se conhece aquela pessoa pelo que realmente ela
é e vale.
Retornar ao coração, portanto, significa retornar ao que há de mais
pessoal e interior em nós. Infelizmente, a interioridade é um valor em
crise. Algumas causas desta crise são antigas e inerentes à nossa
própria natureza. A nossa “composição”, ou seja, o sermos constituídos
de carne e espírito, faz com que sejamos como um plano inclinado, porém,
inclinado, para o exterior, o visível e a multiplicidade. Como o
universo, depois da explosão inicial (o famoso Big Bang), também nós
estamos em fase de expansão e distanciamento do centro. Estamos
perpetuamente “de saída”, por meio daquelas cinco portas ou janelas que
são os nossos sentidos.
Santa Teresa de Ávila escreveu um trabalho intitulado O castelo
interior que é certamente um dos frutos mais maduros da doutrina cristã
da interioridade. Mas existe, infelizmente, também um “castelo
exterior”, e hoje constatamos que também é possível estar trancados
neste castelo. Trancados fora de casa, incapazes de reentrar.
Prisioneiros da exterioridade! Quantos de nós deveríamos fazer própria a
amarga constatação que Agostinho fazia sobre a sua vida antes da
conversão: “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei.
Sim, porque tu estavas dentro de mim e eu fora. Ali te buscava.
Deformado, me jogava nas belas formas das tuas criaturas. Estavas
comigo, e não estava contigo. Mantinham-me distante de ti as tuas
criaturas, inexistentes se não existissem em ti[2]”.
Aquilo que se faz no exterior é exposto ao perigo quase inevitável da
hipocrisia. O olhar de outras pessoas tem o poder de desviar a nossa
intenção, como certos campos magnéticos fazem desviar as ondas. A ação
perde a sua autenticidade e a sua recompensa. O parecer toma a dianteira
do ser. É por isso que Jesus nos convida a jejuar e dar esmolas e orar
ao Pai “no segredo” (cf. Mt 6, 1-4).
A interioridade é o caminho para uma vida autêntica. Fala-se tanto hoje
de autenticidade e se faz disso o critério de vitória ou não da vida.
Mas onde está, para o cristão, a autenticidade? Quando é que uma pessoa é
realmente ela mesma? Somente quando acolhe, como medida, Deus. “Fala-se
tanto – escreve o filósofo Kierkegaard – de vidas desperdiçadas. Mas
desperdiçada é somente a vida daquele homem que nunca se deu conta,
porque nunca teve, no sentido mais profundo, a impressão de que existe
um Deus e que ele, justo ele, o seu eu, está diante deste Deus[3]”.
De um retorno à interioridade têm necessidade especialmente as pessoas
consagradas ao serviço de Deus. Em um discurso dado aos superiores de
uma congregação religiosa contemplativa, Paulo VI disse:
“Hoje estamos vivendo num mundo que parece tomado por uma febre que se
infiltra até no santuário e na solidão. Barulhos e estrondos invadiram
todas as coisas. As pessoas não conseguem mais recolher-se. Vítimas de
milhares de distrações, elas dissipam normalmente as suas energias atrás
das várias formas da cultura moderna. Jornais, revistas, livros invadem
a intimidade das nossas casas e dos nossos corações. É mais difícil do
que antes encontrar uma oportunidade para aquele recolhimento no qual a
alma consegue estar plenamente ocupada em Deus”.
Mas procuremos também ver como fazer, concretamente, para reencontrar e
conservar o hábito da interioridade. Moisés era um homem muito ativo.
Mas está escrito que ele tinha mandado construir uma tenda portátil e em
cada etapa do êxodo fixava a tenda fora do acampamento e regularmente
entrava nela para consultar o Senhor. Ali, o Senhor falava com Moisés
“cara a cara, como um homem fala com outro” (Ex 33, 11).
Mas até isso nem sempre é possível fazer. Nem sempre é possível
retirar-se a uma capela ou a um lugar solitário para reencontrar o
contato com Deus. Por isso, São Francisco de Assis sugere outra solução
mais ao alcance das mãos. Enviando os seus freis pelos caminhos do
mundo, dizia: Nós temos um eremitério sempre conosco onde quer que
estejamos e toda vez que o queiramos podemos, como eremitas, reentrar
neste eremitério. “Irmão corpo é o eremitério e a alma o eremita que ali
habita dentro para orar a Deus e meditar”. É como ter um deserto sempre
“em casa” ou melhor “dentro de casa”, onde é possível retirar-se com o
pensamento em cada momento, até mesmo andando pelo caminho.
Concluímos esta primeira parte da nossa meditação escutando, como
dirigidas a nós, a exortação que Santo Anselmo de Aosta dirigiu ao
leitor em uma sua famosa obra:
“Ânimo, mísero mortal, fuja por um curto período das tuas ocupações,
deixa um pouco os teus pensamentos tumultuados. Afasta nesse momento os
graves problemas e coloca de lado as tuas extenuantes atividades. Espera
um pouco Deus e descansa nele. Entra no íntimo da tua alma, exclua
tudo, exceto Deus e o que te ajude a procura-lo, e, fechada a porta,
diga a Deus: Busco o teu rosto. O teu rosto eu procuro, Senhor[4]”.
2. Os jejuns agradáveis a Deus
O segundo grande tema presente na narração de Jesus no deserto é o
jejum. “Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve
fome” (Mt 4, 1b). O que significa para nós, hoje, imitar o jejum de
Jesus? Antes, com a palavra jejum se entendia somente o limitar-se nos
alimentos e nas bebidas e o abster-se das carnes. Este jejum alimentar
conserva ainda a sua validez e é altamente recomendado, quando, é claro,
a sua motivação é religiosa e não apenas higiênica ou estética, mas não
é mais o único e nem sequer o mais necessário.
A forma mais necessária e significativa de jejum chama-se hoje
sobriedade. Privar-se voluntariamente de pequenos ou grandes confortos,
do que é inútil e às vezes também prejudicial à saúde. Este jejum é
solidariedade com a pobreza de tantos. Quem não lembra as palavras de
Isaías que a liturgia nos faz ouvir no começo de toda Quaresma?
“Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi:
em repartir o teu pão com o faminto,
em recolheres em tua casa os pobres desabrigados,
em vestires aquele que vês nu
e em não te esconderes daquele que é tua carne?” (Is 58, 6-7).
Tal jejum também é uma resposta a uma mentalidade consumista. Em um
mundo, que fez do conforto supérfluo e inútil um dos fins da própria
atividade, renunciar ao supérfluo, saber privar-se de algo, deixar de
recorrer sempre à solução mais cômoda, do escolher a coisa mais fácil, o
objeto de maior luxo, viver, em suma, com sobriedade, é mais eficaz do
que impor-se penitências artificiais. É, acima de tudo, justiça para com
as gerações que virão depois da nossa, que não devem ser obrigadas a
viver das cinzas do que nós consumimos e desperdiçamos. A sobriedade
também tem um valor ecológico, de respeito pela criação.
Mais necessário do que o jejum de alimentos é hoje também o jejum das
imagens. Vivemos em uma civilização da imagem; viramos devoradores de
imagens. Por meio da televisão, a imprensa, a publicidade, deixamos
entrar, em jorros, imagens dentro de nós. Muitas delas não são
saudáveis, transmitem violência e maldade, não fazem mais que incitarem
os piores instintos que nós trazemos dentro. São embaladas expressamente
para seduzir. Mas talvez o pior é que dão uma ideia falsa e irreal da
vida, com todas as consequências que se derivam no impacto depois com a
realidade, especialmente para os jovens. Pretende-se inconscientemente
que a vida ofereça tudo o que a publicidade apresenta.
Se não criamos um filtro, uma barreira, transformamos, em um curto
espaço de tempo, a nossa fantasia e a nossa imaginação em um depósito de
lixo. As imagens ruins não morrem quando chegam ao nosso interior, mas
fermentam. São transformadas em impulsos para a imitação, condicionam
terrivelmente a nossa liberdade. Um filósofo materialista, Feuerbach,
disse: “O homem é o que ele come”; hoje, talvez, devêssemos dizer: “O
homem é o que ele olha”.
Outro destes jejuns alternativos, que podemos fazer durante a Quaresma,
é aquele das palavras más. São Paulo recomenda: “Não saia dos vossos
lábios nenhuma palavra inconveniente, mas, na hora oportuna, a que for
boa para edificação, que comunique graça aos que a ouvirem” (Efésios 4,
29).
Palavras inconvenientes não são só os palavrões; são também as palavras
cortantes, negativas que iluminam sistematicamente o lado fraco do
irmão, palavras que semeiam discórdia e desconfianças. Na vida de uma
família ou de uma comunidade, estas palavras têm o poder de fechar cada
um em si mesmo, de congelar, criando amargura e ressentimento.
Literalmente, “mortificam”, ou seja, causam a morte. São Tiago dizia que
a língua está cheia de veneno mortal; com ela podemos abençoar a Deus
ou amaldiçoa-lo, ressuscitar um irmão ou mata-lo (cf. Tg 3, 1-12). Uma
palavra pode ser pior do que um soco.
No Evangelho de Mateus aparece uma palavra de Jesus que abalou os
leitores do Evangelho de todos os tempos: “Eu vos digo que toda palavra
sem fundamento que os homens disserem, darão contas no Dia do
Julgamento” (Mt 12, 36). Jesus certamente não pretende condenar toda
palavra inútil no sentido de não “estritamente necessária”. Tomado no
sentido passivo, o termo argon (a = sem, ergon = obra) usado no
Evangelho indica a palavra privada de fundamento, portanto, a calúnia;
tomado em sentido ativo, significa a palavra que não fundamenta nada,
que não serve nem mesmo para a necessária descontração. São Paulo
recomendava ao discípulo Timóteo: “Evita o palavreado vão e ímpio, já
que os que o praticam progredirão na impiedade” (2 Tm 2,16). Uma
recomendação que o Papa Francisco nos repetiu mais de uma vez.
A palavra inútil (argon) é o oposto da palavra de Deus, que é de fato
definida, pelo contrário, energes, (1Tess 2,13; Hb 4,12), ou seja,
eficaz, criativa, cheia de energia e útil a tudo. Neste sentido, o que
os homens terão de dar conta no dia do juízo é, em primeiro lugar, a
palavra vazia, sem fé e sem unção, pronunciada por quem deveria, pelo
contrário, pronunciar as palavras de Deus que são “espírito e vida”,
especialmente no momento em que exercita o ministério da Palavra.
3. Tentado por Satanás
Passemos ao terceiro elemento da narração evangélica no qual queremos
refletir: a luta de Jesus contra o demônio, as tentações. Em primeiro
lugar uma pergunta: existe o demônio? Ou seja, a palavra demônio indica
realmente alguma realidade pessoal, dotada de inteligência e vontade, ou
é simplesmente um símbolo, um modo de dizer para indicar a soma do mal
moral no mundo, o inconsciente coletivo, a alienação coletiva e assim
por diante?
A principal evidência da existência do demônio nos Evangelhos não está
nos vários episódios de libertação de possessos, porque na interpretação
destes fatos pode ter influenciado as crenças antigas sobre a origem de
certas doenças. Jesus é tentado no deserto pelo demônio, esta é a
prova. A prova é também os muitos santos que lutaram na vida contra o
príncipe das trevas. Eles não são uns “Dom Quixote” que lutaram contra
moinhos de vento. Pelo contrário, eram homens muito concretos e com a
psicologia muito saudável. São Francisco de Assis uma vez confidenciou a
um companheiro: “Se os freis soubessem quantas ou quais tribulações eu
recebo dos demônios, não haveria um só que não iria começar a chorar por
mim[5]“.
Se para muitos é um absurdo crer no demônio é porque se baseiam em
livros, passam a vida nas bibliotecas ou em escrivaninhas, enquanto o
demônio não está interessado nos livros, mas nas pessoas, especialmente,
é claro, nos santos.
O que pode saber sobre Satanás quem nunca teve que lidar com a
realidade de satanás, mas somente com a sua ideia, ou seja, com as
tradições culturais, religiosas, etnológicas sobre Satanás? Esses
costumam tratar este assunto com grande confiança e superioridade,
descartando tudo como “obscurantismo medieval”. Mas é uma falsa
segurança. Como alguém que se gabasse de não ter nenhum medo do leão,
aduzindo como prova o fato de que já o viu tantas vezes pintado ou
fotografado e nunca se assustou.
É completamente normal e coerente que não acredite no diabo, quem não
crê em Deus. Seria realmente trágico se alguém que não crê em Deus,
cresse no diabo! No entanto, pensando bem, é o que acontece em nossa
sociedade. O demônio, o satanismo e outros fenômenos conexos são hoje de
grande atualidade. O nosso mundo tecnológico e industrializado está
cheio de magos, feiticeiros de cidade, ocultismo, espiritismo,
adivinhadores de horóscopos, vendedores de feitiços, de amuletos, bem
como de verdadeiras seitas satânicas. Expulso pela porta, o diabo voltou
pela janela. Ou seja, expulso pela fé, voltou com a superstição.
A coisa mais importante que a fé cristã tem a dizer-nos, no entanto,
não é que o demônio existe, mas que Cristo venceu o demônio. Cristo e o
demônio não são para o cristão dois princípios iguais e contrários, como
em certas religiões dualísticas. Jesus é o único Senhor; Satanás não é
nada mais do que uma criatura “apodrecida”. Se lhe foi concedido ter
poder sobre os homens, é para que os homens possam ter a possibilidade
de fazer livremente uma escolha de campo e também para que “não se
encham de soberba” (cf. 2 Cor 12,7), achando-se auto-suficientes e sem a
necessidade de algum redentor. “O velho Satanás é louco” diz um canto
espiritual negro. “Deu um tiro para destruir a minha alma, mas errou a
mira e destruiu, em vez disso, o meu pecado”.
Com Cristo não temos nada a temer. Nada e ninguém pode nos prejudicar,
se nós mesmos não o quisermos. Satanás, dizia um antigo padre da Igreja,
depois da vinda de Cristo, é como um cão amarrado no quintal: pode
latir e atacar o quanto quiser; mas, se não somos nós que chegamos
perto, não pode morder. Jesus no deserto se libertou de Satanás para
libertar-nos de Satanás!
Os Evangelhos nos falam de três tentações: “Se tu és o Filho de Deus,
diga para essas pedras se transformarem em pão”; “Se eres o Filho de
Deus, atira-te para baixo”; “Todas estas coisas eu te darei, se,
prostrando-te, me adorares”. Elas têm um objetivo único e comum a todas:
desviar Jesus da sua missão, desvia-lo do objetivo pelo qual veio à
terra; substituir o plano do Pai por outro diferente. No batismo, o Pai
tinha apontado a Cristo o caminho do Servo obediente que salva com a
humildade e o sofrimento; Satanás propõe um caminho de glória e de
triunfo, o caminho que todos então esperavam do Messias.
Ainda hoje, todo o esforço do diabo é de desviar o homem do objetivo
pelo qual veio ao mundo que é o de conhecer, amar e servir a Deus nesta
vida para gozá-lo depois na outra. Distraí-lo, ou seja, atraí-lo para
outro lugar, para outra direção. Satanás, porém, é também astuto; não
aparece pessoalmente com chifres e cheiro de enxofre (seria muito fácil
reconhece-lo); serve-se das coisas boas levando-as ao excesso,
absolutizando-as e transformando-as em ídolos. O dinheiro é uma coisa
boa, como o é o prazer, o sexo, o comer, o beber. Mas se eles se
transformam na coisa mais importante da vida, o fim, não mais meios,
então se tornam destrutivos para a alma e muitas vezes também para o
corpo.
Um exemplo particularmente relevante para o tema é o divertimento, a
distração. O descanso é uma dimensão nobre do ser humano; Deus mesmo
recomendou o repouso. O mal é fazer do jogo o objetivo da vida, viver a
semana como espera do sábado à noite ou do jogo no estádio no domingo,
por não mencionar outros passatempos muito menos inocentes. Neste caso, a
diversão muda de significado e, mais do que servir para o crescimento
humano e aliviar o estreasse e o cansaço, aumenta-os.
Um hino litúrgico da Quaresma exorta a usar com mais moderação, neste
tempo, as “palavras, alimentos, bebidas, sono e diversões”. Este é um
tempo para redescobrir por que viemos ao mundo, de onde viemos, aonde
iremos, que rota estamos seguindo. Senão, pode acontecer conosco o que
aconteceu com o Titanic ou, mais próximo de nós no tempo e no espaço,
com a Costa Concordia.
4. Por que Jesus foi para o deserto
Tentei destacar os ensinamentos e exemplos que nos chegam de Jesus para
este tempo da Quaresma, mas tenho que dizer que até agora não falei do
mais importante de todos. Por que Jesus, depois do seu batismo, foi para
o deserto? Para ser tentado por Satanás? Não, nem sequer pensava nisso;
ninguém vai de propósito buscar tentações e ele mesmo nos ensinou a
rezar para não sermos levados à tentação. As tentações foram uma
iniciativa do demônio, permitidas pelo Pai, para a glória do seu Filho e
como ensinamento para nós.
Foi ao deserto para jejuar? Também, mas não principalmente para isso.
Foi para rezar! Sempre quando Jesus se retirava em lugares desertos era
para orar ao seu Pai. Foi para sintonizar-se, como homem, com a vontade
divina, para aprofundar a missão que a voz do Pai, no batismo, lhe tinha
feito vislumbrar: a missão do Servo obediente chamado a redimir o mundo
com o sofrimento e a humilhação. Foi em definitiva para orar, para
estar em intimidade com o seu Pai. E isso é também o objetivo principal
da nossa Quaresma. Foi ao deserto pelo mesmo motivo pelo qual, segundo
Lucas, um dia, mais tarde, subiu ao Monte Tabor, ou seja, para orar (Lc
9, 28).
Não se vai ao deserto somente para deixar algo – o barulho, o mundo, as
ocupações -; vai-se principalmente para encontrar algo, ou melhor,
Alguém. Não se vai somente para reencontrar a si mesmo, para colocar-se
em contato com o próprio eu profundo, como em tantas formas de
meditações não cristãs. Estar a sós consigo mesmo pode significar
encontrar-se com a pior das companhias. O crente vai ao deserto, desce
ao próprio coração, para renovar o seu contato com Deus, porque sabe que
“no homem interior habita a Verdade”.
É o segredo da felicidade e da paz nesta vida. O que mais deseja um
apaixonado do que estar a sós, em intimidade, com a pessoa amada? Deus é
apaixonado por nós e deseja que nós nos apaixonemos por ele. Falando do
seu povo como de uma esposa, Deus disse: “A conduzirei ao deserto e
falarei ao seu coração” (Os 2,16). Sabe-se qual é o efeito do
enamoramento: todas as coisas e todas as outras pessoas ficam pra trás,
em segundo plano. Há uma presença que preenche tudo e faz todo resto
“secundário”. Não isola dos outros, que, de fato, torna ainda mais
atento e disponível para com os outros, mas como de reflexo, por
redundância do amor. Oh, se nós homens e mulheres de Igreja
descobríssemos o quanto está perto de nós, ao alcance das mãos, a
felicidade e a paz que buscamos neste mundo!
Jesus está esperando por nós no deserto: não o deixemos sozinho em todo esse tempo.
Padre Raniero Cantalamessa
Pregador da Casa Pontifícia
Fonte: http://www.rccbrasil.org.br/espiritualidade-e-formacao/index.php/artigos/1165-com-jesus-no-deserto
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